Parecer n.º 27/2019, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República n.º 219/2019, Série II, de 2019-11-14, sobre a definição de competências para a recolha de biorresíduos em Portugal
Descritores:
ERSAR - Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos - Resíduos Urbanos - Biorresíduos - Recolha seletiva - Recolha indiferenciada - Tratamento - Plano estratégico - Município - Competência - Sistema Multimunicipal - Exploração e Gestão - Contrato Público - Modificação do Contrato - Princípio da igualdade - Princípio da transparência - Princípio da proteção da concorrência - Interesse público - Concessão de Serviço público - Atividade principal - Regime remuneratório - Tarifas - Ativos regulados
Conclusões:
1.ª A reorganização do setor dos resíduos, designadamente a distribuição legal de atribuições e competências que rege a atuação dos municípios e das entidades gestoras de sistemas multimunicipais de tratamento e de recolha seletiva de resíduos urbanos, ganha forma em virtude da aprovação, entre outros, do Decreto-Lei n.º 96/2014, de 25 de junho;
2.ª A Lei atribui às concessionárias, enquanto atividade principal relativa à exploração e à gestão de sistema multimunicipal de resíduos urbanos, por um lado, a receção e «o tratamento de resíduos urbanos resultantes da recolha indiferenciada», por outro, a «recolha seletiva de resíduos urbanos, incluindo a respetiva triagem»;
3.ª O Decreto-Lei n.º 96/2014, que consagra o regime jurídico da concessão da exploração e da gestão dos sistemas multimunicipais de tratamento e de recolha seletiva de resíduos urbanos, também delimita o objeto da recolha seletiva, e neste não inclui os biorresíduos: «resíduos biodegradáveis de espaços verdes, nomeadamente os de jardins, parques, campo desportivos, bem como os resíduos biodegradáveis alimentares e de cozinha das habitações, das unidades de fornecimento de refeições e de retalho e os resíduos similares das unidades de transformação de alimentos» (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de setembro, na redação do Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho);
4.ª Por «recolha seletiva», deve entender-se «a recolha de resíduos urbanos nos ecopontos, nos ecocentros e noutros pontos específicos de recolha localizados no âmbito geográfico da concessão, incluindo a respetiva triagem e a respetiva entrega às entidades licenciadas para a sua retoma»;
5.ª À data da aprovação do diploma que regulou a concessão e estipulou as respetivas Bases (Decreto-Lei n.º 96/2014), a legislação do setor não ignorava o conceito de biorresíduo: o legislador, que elencou os resíduos objeto de recolha seletiva, não desejou incluir nesta os biorresíduos;
6.ª Assim sendo, não se vislumbra que o disposto na lei permita acomodar uma nova distribuição competencial, consubstanciada na transição de um modelo baseado no tratamento de resíduos orgânicos recolhidos indiferenciadamente, pelos municípios, para um modelo assente na recolha seletiva, como fluxo diferenciado, a cargo da concessionária. Só este entendimento permitirá que não se desvirtue o objeto da concessão tal como definido pelo legislador no Decreto-Lei n.º 96/2014, que aprova as bases da concessão do contrato;
7.ª A inclusão da recolha seletiva de biorresíduos na recolha seletiva de resíduos urbanos, legalmente prevista a cargo da concessionária, representaria uma modificação substancial do objeto da concessão. Consequentemente, para os termos dos contratos que a concretizam, não é possível assimilá-la, por exemplo, a mero serviço complementar e inseparável do objeto do contrato, coberto pelo disposto no artigo 454.º do Código dos Contratos Públicos;
8.ª Sublinhe-se que, mesmo um instrumento estratégico como o PERSU 2020+, considerou que a recolha seletiva de biorresíduos está entre as «mudanças de paradigmas», que implicam «alterações estratégicas», provocadas pela nova visão de economia circular;
9.ª Ora entre a recolha seletiva já convencionada, que a lei fixou para o serviço público, e a recolha seletiva de biorresíduos há uma ampliação e diferença material muito significativas;
10.ª Apesar de o Código dos Contratos Públicos conter disposições que admitem a modificação de contratos, estas devem ser lidas em conjugação com disposições legais que lhe preveem limites e condições;
11.ª Os princípios da igualdade entre operadores económicos, da transparência e da proteção da concorrência, que estão tradicionalmente ligados à fase pré-contratual, enquanto garantias que devem conformar a adjudicação, estenderam-se à fase da execução, como forma de garantia do interesse público, mas também dos interessados que poderiam ter sido adjudicatários;
12.ª É à luz desta compreensão protetora da concorrência que devem ser lidas as normas legais definidoras das condições das concessões de serviço público, incluindo as que estão em causa na consulta, não sendo de admitir o alargamento do nelas disposto à recolha seletiva de biorresíduos pela concessionária, por esta leitura implicar uma modificação substancial do objeto do contrato legalmente definido, não acomodável num entendimento das normas amigo da concorrência;
13.ª Acresce que, se os biorresíduos fossem objeto da recolha seletiva admitida (e contratada) à concessionária, os municípios deixariam de recolher, transportar e entregar biorresíduos;
14.ª A recolha em baixa, enquanto recolha indiferenciada, a cargo dos municípios, pode, hoje, ser entregue por estes a operadores privados. Nos termos da alínea q), da Base I, os municípios, enquanto utilizadores do sistema multimunicipal gerido pela concessionária, podem contratualizar o respetivo sistema municipal de recolha, transporte e armazenamento a outra entidade gestora;
15.ª Caso à recolha destes resíduos até agora indiferenciados, fossem subtraídos os biorresíduos, que passariam a ser recolha seletiva a cargo exclusivo da concessionária, a quem foi atribuída a recolha seletiva definida nos termos do Decreto-Lei n.º 96/2014, esta novel opção de leitura das normas viria modificar a atual situação do mercado;
16.ª Não pode retirar-se da delimitação competencial definida na lei, designadamente no Decreto-Lei n.º 96/2014, que caiba às concessionárias dos sistemas multimunicipais de gestão de resíduos urbanos nos territórios em que a lei tenha estabelecido o respetivo direito de exclusivo, a incumbência de proceder à recolha seletiva de biorresíduos;
17.ª Não sendo competência das concessionárias a recolha seletiva de biorresíduos, não lhes caberá a decisão de delegar ou manter nos municípios a realização destes investimentos, pelo que esta permanece na esfera municipal, sem prejuízo de estes procederem a uma recolha seletiva de biorresíduos, por si, ou contratando-a a terceiros;
18.ª Na sequência do que vem de se concluir, considera-se que os municípios poderão ser responsáveis por candidaturas aos avisos abertos pelo PO SEUR - Programa Operacional de Sustentabilidade e Eficácia no Uso de Recursos, a título e por direito próprio, para fins de investimento da realização da atividade de recolha seletiva de biorresíduos, uma vez que esta recolha seletiva não integra o objeto de concessão, não estando, por isso, legalmente deferido às empresas concessionárias, mas sim aos municípios;
19.ª Apesar de o n.º 2 do artigo 5.º fixar que «os municípios são obrigados a entregar à concessionária do sistema multimunicipal do qual são utilizadores todos os resíduos urbanos cuja gestão se encontre sob sua responsabilidade», a atividade principal dos referidos sistemas a cargo das concessionárias, legalmente fixada, compreende «o tratamento de resíduos urbanos resultantes da recolha indiferenciada», realizada pelos municípios, resíduos em relação aos quais há, por parte destes, obrigação de entrega às concessionárias;
20.ª O regime remuneratório da concessão baseia-se no reconhecimento à concessionária dos proveitos permitidos (fixados nas bases e no contrato de concessão), a serem refletidos nas tarifas a aplicar aos utilizadores do sistema (Base XVII);
21.ª O artigo 28.º do Regulamento Tarifário da ERSAR estabelece que a Base de Ativos Regulados é fixada pelo regulador, sendo constituída pelos ativos afetos à exploração de cada uma das atividades principais. O «ativo» é o bem com caráter duradouro ou de permanência na entidade gestora, controlado por esta e em relação ao qual é esperado um benefício económico futuro no âmbito da atividade regulada, não sendo destinado a venda ou transformação no decurso das atividades da entidade gestora» (artigo 3.º n.º 2, alínea a), do Regulamento Tarifário n.º 52/2018);
22.ª Sendo os proveitos permitidos, a ter em conta na definição da tarifa, fixados pela ERSAR levando em linha de conta os investimentos efetuados que hajam sido integrados na Base de Ativos Regulados (BAR), a admissibilidade, ou não, da integração destes investimentos tem reflexos na tarifa a definir;
23.ª Tendo em conta que, nos termos da lei, a Base de ativos regulados constituída pelos ativos afetos à exploração de cada uma das atividades principais, e resultando do que atrás se disse relativamente à distribuição legal de competências que a atividade de recolha seletiva de biorresíduos não pode ser considerada atividade principal da concessionária, há que concluir que não é possível considerar-se que as normas admitam a integração na Base de Ativos Regulados (e por esta via refletir-se na tarifa) dos investimentos numa recolha seletiva que não corresponde à atividade principal.